domingo, 31 de março de 2013

O homem que sabia mentir

Alguns textos nunca mostrei a ninguém. As vezes não me sinto a vontade. Este é um deles. Faz um bom tempo que o escrevi, e só hoje, impulsionado pelo dia da mentira, resolvi compartilhá-lo e deixar esse medo de lado. 


O Homem Que Sabia Mentir

Rafael Amorim

Houve um grito no silêncio da casa.
Não dava para distinguir se era um homem ou uma mulher, pelo menos não nos primeiros segundos em que Alexandre abriu os olhos. Seu corpo sabia que alguém havia gritado e mandava que ele levantasse com pressa. Mas seu cérebro, tão acostumado com aquela cena, sabia que era apenas o celular no criado mudo, convidando-o para mais um dia de trabalho.

  Inferno! – tateou até encontrar o modelo de última geração do iQualquer coisa e o travou. Era sábado, não havia trabalho. A editora em que trabalhava não costumava funcionar aos sábados. Deus seja louvado, ele anotava mentalmente todas às vezes para agradecer isso domingo na igreja.

Levantou-se calmamente, apesar do susto inicial, e caminhou pelo quarto iluminado pelo sol das oito. Bem aventurado todo o homem que tem o privilégio de acordar sábado pela manhã com os raios de sol iluminando o contorno da esposa no meio dos lençóis caros de seda. Não havia isso na Bíblia, havia? Devia ter. Mais uma nota mental para comentar com os amigos.

A casa inteira estava iluminada, do corredor de seu quarto ao primeiro andar. Andou devagar até o quarto das crianças, como costumava fazer todos os dias e checou, só para dar continuidade ao hábito. Dormiam tranquilamente no beliche. 

Gostava dos sábados pela manhã, mas aquele sábado era especial para ele. Fora dormir na sexta planejando todos os passos e nem chegou a ouvir o que a esposa falava sobre a briga dos filhos. Poderia tomar café na rua e deixaria um bilhete avisando que fora resolver questões financeiras da gráfica. Mentir, afinal, era sua maior habilidade.

O carro saiu pela rua ensolarada e estacionou em um calçadão bem longe dali. O homem que sabia mentir começou sua caminhada pela areia. Caminhada que levou quatro horas, óculos escuros e água de coco em seu caminho. A praia encheu-se como que por mágica e lá estava ele, sentado num restaurante não muito fino com alguns pratos à mesa. O almoço solitário durou mais do que ele imaginava. Ficou olhando as pessoas chegando naquele sábado de primavera, que mais parecia verão. Crianças corriam com seus pais e amigos. Era uma cena que acostumara desde os vinte e sete. Hoje aos quarenta, imaginava o que responderia se seus filhos lhe perguntassem o que ele estava fazendo sentado ali, tão quieto.

 – Olha filho – ele começaria como havia ensaiado secretamente. – Antes do papai conhecer sua mãe, ele namorou outras pessoas. E uma dessas pessoas era um rapaz muito bonito. Ele o chamava de Sol, sabe? Porque era assim que seu pai o via, ele simplesmente iluminava tudo quando chegava. Sabe esses rapazes que seus amigos do colégio tanto tiram sarro, esses que aparecem em programas de humor com voz afetada e jeito duvidoso? É, ele era dessa forma e seu pai gostava muito, seu pai o amava. Mas essas coisas eram bem complicadas na época, os dois não puderam ficar juntos. A sociedade não permitia, seu avô iria morrer se soubesse.

Era tão mesquinho ensaiar tudo aquilo para dizer ao filho. Não que ele não fosse capaz de dizer, mas o modo como ele próprio se descrevia, narrando tudo em terceira pessoa. Era como se aquela história não fosse a dele, do homem que mentiu todos esses anos para si mesmo. 


 – Hoje faz mais um ano que perdi o Sol. – continuaria. – Se acharam no direito de tirar a vida dele. Alguns intolerantes que hoje devem viver livres por ai. Chorei tanto e seus avós não sabiam por que. Eu menti dizendo que havia perdido um amigo da época do colégio. Até quiseram que eu fosse para um psicólogo, mas me recusei. Preferi ter aquela dor para mim, e a tive, durante todos esses anos. No dia de hoje resolvi visitar todos os lugares em que íamos, incluindo a praia.


A tarde já caía e Alexandre agora estava a caminho de um bar em um bairro longe do subúrbio onde morava atualmente. Tocava Barão Vermelho alto no carro e ao chegar no local, escolheu a mesa perto da porta e permaneceu sentado lá. O bar estava cheio. O celular tocou inúmeras vezes. Ele o atendeu poucas. Eram os amigos da editora chamando para a pelada de sábado a tarde. Murmurou qualquer desculpa e deixou a última ligação ser encerrada. 

Durante aqueles anos ficou tão parecido com aqueles outros homens com o qual interagia que chegava ter repulsa quando um deles usava palavras como bichinha, boiola, veado... Mas toda aquela repulsa era ofuscada por um falso riso de virilidade. Tinha vergonha dos seus, caso soubessem daquele passado. Soubessem que ele havia sido iluminado pelo Sol.

Outro homem sentado na mesa da frente o encarava. Depois do contato visual, sorriu maliciosamente para Alexandre. Sabia que se ele fosse ao banheiro o estranho iria atrás. Mas agora ele não possuía interesse algum para compartilhar daquele mesmo tesão. E afinal, aquele era o bar onde havia ocorrido a primeira troca de olhares. Quando a internet não era a deusa dos encontros. Quando o Sol, um menino com andar rebolativo e rodeado de amigas, botou os olhos nele. Seria uma traição fazer aquele lugar ter outro significado.

  E então, o papai conheceu a mamãe – a voz era firme dentro da sua cabeça, o que não significava que seria caso aquela conversa realmente acontecesse. – Era uma festa no último ano da faculdade. Eu não estava com ânimo para nada, nem sabia como tinha chegado até ali. Ela veio puxar assunto comigo e nos primeiros minutos eu fui bem grosso, mas logo depois a conversa ficou boa e nos tornamos amigos. Começamos à namorar um mês depois daquilo. – Ele precisou parar. 

Teria que omitir algumas coisas. Teria que mentir novamente. A esposa não sabia de absolutamente nada. Sempre que percebia Alexandre pensativo era enganada com a desculpa de ser algum problema na distribuição ou tiragem dos livros da editora. O casamento não sobreviveria com aquela notícia, ele sabia. Teria que contar sobre todas as vezes que fora buscar prazer no banheiro público mais próximo, das vezes que estendia alguns minutos da hora do almoço em algum escritório próximo, teria que conta das conversas que começavam com rapazes mais novos nos sites de bate papo e terminavam num quarto de motel. E embora a amasse com todas as suas forças, não queria mentir para a mulher com quem dormia todas as noites. Não queria mentir outra vez. Como fez durante toda a relação.

A noite chegara sem avisar e todos os pontos que o faziam lembrar o Sol haviam sido visitados. Palavra alguma tinha sido dita à ninguém, a não ser aos vendedores dos quiosques, aos garçons do restaurante, flanelinhas, colegas do trabalho... Completos estranhos.  A casa estava silenciosa e escura, quase como havia deixado ao sair naquele dia mais cedo. Era quase meia-noite e o casal de filhos dormia. Detestava perder um dia com eles, mas aquele era especial. Era diferente.

Tomou o banho noturno bem demorado, não conseguindo distinguir a água que escorria do chuveiro e lágrimas. Era o truque que usava para não ser vencido pela dor. Saiu só de sunga mesmo e entrou no quarto. A mulher já dormia: estava deitada majestosamente, fazendo com que os olhos lacrimejassem só de ver. Antes de deitar e envolvê-la em seus braços, foi até o armário, pegou a mala com documentos pessoais, e lá do fundo, retirou a foto. Eram dois rapazes abraçados. Não passavam dos vinte. Um deles era a caricatura mais nova e menos acabada do homem atual, e era só sorrisos. O outro tinha os cabelos bem loiros que pareciam iluminar toda a foto. Era capaz de iluminar até aquele quarto. O homem que sabia mentir apertou a foto com força contra o peito, sentindo-se apaixonado. No fundo não importava.  Era algo que ninguém poderia tirá-lo. Era a única coisa que lhe sobrou de sua antiga integridade. Era um sentimento, que era a única verdade para o homem que sabia mentir. 

Deu um beijo no loiro sorridente e não precisou falar nada para ter certeza de que, onde quer que ele estivesse, entenderia as três palavras nunca ditas.


Um comentário:

Unknown disse...

Adorei a forma como cada frase me pegou e me fez imaginar cada detalhe da história. Um ótimo texto!