Alguns textos nunca mostrei a ninguém. As vezes não me sinto a vontade. Este é um deles. Faz um bom tempo que o escrevi, e só hoje, impulsionado pelo dia da mentira, resolvi compartilhá-lo e deixar esse medo de lado.
O Homem Que Sabia Mentir
Rafael Amorim
Houve um grito no
silêncio da casa.
Não dava para
distinguir se era um homem ou uma mulher, pelo menos não nos primeiros segundos
em que Alexandre abriu os olhos. Seu corpo sabia que alguém havia gritado e
mandava que ele levantasse com pressa. Mas seu cérebro, tão acostumado com
aquela cena, sabia que era apenas o celular no criado mudo, convidando-o para
mais um dia de trabalho.
– Inferno! – tateou até
encontrar o modelo de última geração do iQualquer
coisa e o travou. Era sábado, não havia trabalho. A editora em que trabalhava não costumava funcionar aos sábados. Deus seja louvado, ele anotava
mentalmente todas às vezes para agradecer isso domingo na igreja.
Levantou-se calmamente,
apesar do susto inicial, e caminhou pelo quarto iluminado pelo sol das oito. Bem
aventurado todo o homem que tem o privilégio de acordar sábado pela manhã com
os raios de sol iluminando o contorno da esposa no meio dos lençóis caros de
seda. Não havia isso na Bíblia, havia? Devia ter. Mais uma nota mental para
comentar com os amigos.
A casa inteira estava
iluminada, do corredor de seu quarto ao primeiro andar. Andou devagar
até o quarto das crianças, como costumava fazer todos os dias e checou, só para
dar continuidade ao hábito. Dormiam tranquilamente no
beliche.
Gostava dos sábados pela manhã, mas aquele sábado era especial para ele. Fora dormir na sexta planejando todos os passos e nem chegou a ouvir o que a esposa falava sobre a briga dos filhos. Poderia tomar café na rua e deixaria um bilhete avisando que fora resolver questões financeiras da gráfica. Mentir, afinal, era sua maior habilidade.
Gostava dos sábados pela manhã, mas aquele sábado era especial para ele. Fora dormir na sexta planejando todos os passos e nem chegou a ouvir o que a esposa falava sobre a briga dos filhos. Poderia tomar café na rua e deixaria um bilhete avisando que fora resolver questões financeiras da gráfica. Mentir, afinal, era sua maior habilidade.
O carro saiu pela rua
ensolarada e estacionou em um calçadão bem longe dali. O homem que sabia mentir
começou sua caminhada pela areia. Caminhada que levou quatro horas, óculos
escuros e água de coco em seu caminho. A praia encheu-se como que por mágica e
lá estava ele, sentado num restaurante não muito fino com alguns pratos à mesa.
O almoço solitário durou mais do que ele imaginava. Ficou olhando as pessoas
chegando naquele sábado de primavera, que mais parecia verão. Crianças corriam
com seus pais e amigos. Era uma cena que acostumara desde os vinte e sete. Hoje aos quarenta, imaginava o que responderia se seus filhos
lhe perguntassem o que ele estava fazendo sentado ali, tão quieto.
– Olha filho – ele
começaria como havia ensaiado secretamente. – Antes do papai conhecer sua
mãe, ele namorou outras pessoas. E uma dessas pessoas era um rapaz muito
bonito. Ele o chamava de Sol, sabe? Porque era assim que seu pai o via, ele
simplesmente iluminava tudo quando chegava. Sabe esses rapazes que seus amigos
do colégio tanto tiram sarro, esses que aparecem em programas de humor com voz
afetada e jeito duvidoso? É, ele era dessa forma e seu pai gostava muito, seu pai o amava. Mas essas coisas
eram bem complicadas na época, os dois não puderam ficar juntos. A sociedade
não permitia, seu avô iria morrer se soubesse.
Era tão mesquinho
ensaiar tudo aquilo para dizer ao filho. Não que ele não fosse capaz de dizer,
mas o modo como ele próprio se descrevia, narrando tudo em terceira pessoa. Era
como se aquela história não fosse a dele, do homem que mentiu todos esses anos
para si mesmo.
– Hoje faz mais um ano que perdi o Sol. – continuaria. – Se acharam no direito
de tirar a vida dele. Alguns intolerantes que hoje devem viver livres por ai.
Chorei tanto e seus avós não sabiam por que. Eu menti dizendo que havia perdido
um amigo da época do colégio. Até quiseram que eu fosse para um psicólogo, mas
me recusei. Preferi ter aquela dor para mim, e a tive, durante todos esses
anos. No dia de hoje resolvi visitar todos os lugares em que íamos, incluindo a
praia.
A tarde já caía e
Alexandre agora estava a caminho de um bar em um bairro longe do subúrbio onde
morava atualmente. Tocava Barão Vermelho alto no carro e ao chegar no local, escolheu a mesa perto da porta e permaneceu sentado lá. O bar estava cheio. O
celular tocou inúmeras vezes. Ele o atendeu poucas. Eram os amigos da editora
chamando para a pelada de sábado a tarde. Murmurou qualquer desculpa e deixou a
última ligação ser encerrada.
Durante aqueles anos ficou tão parecido com aqueles outros homens com o qual interagia que chegava ter repulsa quando um deles usava palavras como bichinha, boiola, veado... Mas toda aquela repulsa era ofuscada por um falso riso de virilidade. Tinha vergonha dos seus, caso soubessem daquele passado. Soubessem que ele havia sido iluminado pelo Sol.
Durante aqueles anos ficou tão parecido com aqueles outros homens com o qual interagia que chegava ter repulsa quando um deles usava palavras como bichinha, boiola, veado... Mas toda aquela repulsa era ofuscada por um falso riso de virilidade. Tinha vergonha dos seus, caso soubessem daquele passado. Soubessem que ele havia sido iluminado pelo Sol.
Outro homem sentado na
mesa da frente o encarava. Depois do contato visual, sorriu maliciosamente para Alexandre. Sabia que se ele fosse ao
banheiro o estranho iria atrás. Mas agora ele não possuía interesse algum para
compartilhar daquele mesmo tesão. E afinal, aquele era o bar onde havia
ocorrido a primeira troca de olhares. Quando a internet não era a deusa dos
encontros. Quando o Sol, um menino com andar rebolativo e rodeado de amigas, botou
os olhos nele. Seria uma traição fazer aquele lugar ter outro significado.
– E então, o papai
conheceu a mamãe – a voz era firme dentro da sua cabeça, o que não significava
que seria caso aquela conversa realmente acontecesse. – Era uma festa no último
ano da faculdade. Eu não estava com ânimo para nada, nem sabia como tinha
chegado até ali. Ela veio puxar assunto comigo e nos primeiros minutos eu fui
bem grosso, mas logo depois a conversa ficou boa e nos tornamos amigos.
Começamos à namorar um mês depois daquilo. – Ele precisou parar.
Teria que omitir algumas coisas. Teria que mentir novamente. A esposa não sabia de absolutamente nada. Sempre que percebia Alexandre pensativo era enganada com a desculpa de ser algum problema na distribuição ou tiragem dos livros da editora. O casamento não sobreviveria com aquela notícia, ele sabia. Teria que contar sobre todas as vezes que fora buscar prazer no banheiro público mais próximo, das vezes que estendia alguns minutos da hora do almoço em algum escritório próximo, teria que conta das conversas que começavam com rapazes mais novos nos sites de bate papo e terminavam num quarto de motel. E embora a amasse com todas as suas forças, não queria mentir para a mulher com quem dormia todas as noites. Não queria mentir outra vez. Como fez durante toda a relação.
Teria que omitir algumas coisas. Teria que mentir novamente. A esposa não sabia de absolutamente nada. Sempre que percebia Alexandre pensativo era enganada com a desculpa de ser algum problema na distribuição ou tiragem dos livros da editora. O casamento não sobreviveria com aquela notícia, ele sabia. Teria que contar sobre todas as vezes que fora buscar prazer no banheiro público mais próximo, das vezes que estendia alguns minutos da hora do almoço em algum escritório próximo, teria que conta das conversas que começavam com rapazes mais novos nos sites de bate papo e terminavam num quarto de motel. E embora a amasse com todas as suas forças, não queria mentir para a mulher com quem dormia todas as noites. Não queria mentir outra vez. Como fez durante toda a relação.
A noite chegara sem
avisar e todos os pontos que o faziam lembrar o Sol haviam sido visitados.
Palavra alguma tinha sido dita à ninguém, a não ser aos vendedores dos
quiosques, aos garçons do restaurante, flanelinhas, colegas do trabalho...
Completos estranhos. A casa estava
silenciosa e escura, quase como havia deixado ao sair naquele dia mais cedo.
Era quase meia-noite e o casal de filhos dormia. Detestava perder um dia com eles,
mas aquele era especial. Era diferente.
Tomou o banho noturno
bem demorado, não conseguindo distinguir a água que escorria do chuveiro e
lágrimas. Era o truque que usava para não ser vencido pela dor. Saiu só de
sunga mesmo e entrou no quarto. A mulher já dormia: estava deitada majestosamente, fazendo
com que os olhos lacrimejassem só de ver. Antes de deitar e envolvê-la em seus
braços, foi até o armário, pegou a mala com documentos pessoais, e lá do fundo,
retirou a foto. Eram dois rapazes abraçados. Não passavam dos vinte. Um deles
era a caricatura mais nova e menos acabada do homem atual, e era só sorrisos. O
outro tinha os cabelos bem loiros que pareciam iluminar toda a foto. Era capaz
de iluminar até aquele quarto. O homem que sabia mentir apertou a foto com
força contra o peito, sentindo-se apaixonado. No fundo não importava.
Era algo que ninguém poderia tirá-lo.
Era a única coisa que lhe sobrou de sua antiga integridade. Era um sentimento,
que era a única verdade para o homem que sabia mentir.
Deu um beijo no loiro
sorridente e não precisou falar nada para ter certeza de que, onde quer que ele
estivesse, entenderia as três palavras nunca ditas.
Um comentário:
Adorei a forma como cada frase me pegou e me fez imaginar cada detalhe da história. Um ótimo texto!
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